quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Somos singulares

Em 10/10/2003, publiquei no site SACI um dos "posts" de um antigo blog. Como ando, atualmente, meio embotado nas escritas, e para amainar as cutucadas rumo à produção que a Katinha, meu amor, não dispensa quando me vi assim, mais para o molenga, volto a publicá-lo aqui, contando com a condescendência dos que, por algum acaso, já o leram:

Fui honrado com um comentário, via email, do Renato, o Repórter SACI. Ele, que é tetraplégico, visita os lugares públicos de São Paulo, e relata, no site da Rede SACI, as condições de acessibilidade física. Um serviço bacana e que, com os repórteres voluntários, acabará se espalhando. Pois é, de modo arguto e direto, Renato disse a respeito de aspectos de meu texto ("Somos deficientes de tempos civilizados"http://www.saci.org.br/index.php?modulo=akemi&parametro=7665): "Mas olha que não estamos distantes de sermos sacrificados pela sociedade maluca. Você viu que os vereadores de BH querem que apenas 5% dos ônibus sejam adaptados?" E continua o Renato: "Isto acaba matando os deficientes de um outro jeito, não conseguimos sair de casa, ter uma vida normal. Infelizmente, este pessoal só aprende quando acontecer com eles..."

Não aprende não, meu amigo, inclusive porque essa é uma péssima forma de se aprender. E veja, se acontecer com eles, eles não serão mais eles, serão nós. E o cachorro louco volta a correr atrás do rabo. A esperança de uma transformação democratizante e inclusiva está, em parte, em instituições e em leis que nos apresentem no palco como cidadãos, mas está também, e principalmente, num paciente trabalho educativo. Trabalho capaz de expandir e infiltrar uma consciência de apreço e respeito às diferenças, uma consciência de que somos todos diferentes, mais que isso, singulares (o que nada tem a ver com individualismos). Trabalho que, por exemplo, você e a Rede SACI vêm desenvolvendo com maestria.

Somos singulares. A deficiência física é apenas um aspecto da vida de algumas pessoas, você, eu, Tchela, João, Maria, Abigail, Severino etc, e estamos até na moda: com a isenção de impostos para a compra do carrinho 0 Km tem muita gente nova tentando provar que sempre foi do clube. Somos todos singulares, andantes, muleteiros e cadeirantes, surdos e ouvintes, cegos e videntes, feios e bonitos, etc e tal, e, portanto - e isso é material para outros bons papos! -, não cabe falar em normalidade. E gosto de brincar com a idéia de normalidade, sempre a vejo como a realidade e os valores que são próprios aos dominantes e aos poderosos, e que eles tentam provar, por meios pacíficos ou não, que são a realidade e os valores de todos.

No outro texto, eu tratava de um deficiente que não existe, uma entidade quase abstrata. Ele só existe se conseguimos imaginar o somatório, e a junção, de parcelas das vidas de todos aqueles que têm a deficiência física como um dos aspectos de suas existências. Meio complicado, né? Quando falamos, por exemplo, nos deficientes físicos brasileiros, ou nos cegos do mundo, ou nos tetraplégicos de Guarulhos, estamos, ao mesmo tempo, falando de todos os concernidos e de ninguém. Você trouxe a voz do deficiente real, com desejos, raivas, esperanças, essas coisas, e eis o que mais importa, é aí que se dá a luta ou desânimo, a inserção ou a exclusão. Um deficiente passional, contraditório, querendo ser feliz, e que põe vida no meu "deficiente teórico", digamos assim, que é uma mera concepção, mas é útil por nos ajudar na tentativa de compreender as questões que não podem ser analisadas apenas sob o olhar e os interesses de um ou outro deficiente específico.

Está ficando meio longo, né? Vamos mais um pouquinho, prometo resumir. Wright Mills foi um cientista social que viveu nos meados do século passado, e foi um cara que sempre iluminou minhas singelas tentativas de compreender o mundo e a vida social. Ele dizia que a vida real, os fatos sociais, se explicam como cruzamentos da biografia com a história. É de alto risco tentar simplificar isso numa conversa assim rápida, mas vamos lá. As pessoas que vivem numa sociedade, maior ou menor, num determinado tempo histórico partilham esse painel de fundo, sobre o qual suas biografias se exercem, e só assim suas vidas poderão ser compreendidas Brinquei com essa idéia quando, no outro texto, afirmei que meu primeiro sentimento, por não ter nascido numa tribo do Xingú, era de alívio. E se o tivesse, minha biografia, na certa, seria curtinha, por imposição de um painel histórico, e cultural, em vigor.

Falemos da Tchela, nossa querida amiga comum. Ela prepara um livro onde descreverá um claro exemplo: a história de uma mulher deficiente física que seguia vivendo sua vida (biografia) quando, em determinado momento, dá de cara com o computador e a Internet (possibilidades históricas). O encontro redireciona sua própria vida, e vai nascendo daí uma escritora. Tivesse ela, ao se casar, mudado para um pequeno vilarejo, talvez o mundo visse surgir, dessa conjunção, uma boa doceira, uma requintada bordadeira, e eu não teria tido o imenso prazer de conhecê-la, mesmo que só virtualmente.

Ainda a Tchela, e que ela me perdoe pelo uso e pelo abuso do exemplo. No Maré, seu concorrido blog(http://tchela.blogspot.com/), ela nos encanta com pedacinhos bem contados de sua vida. Em algum momento das últimas décadas do século passado, ela (biografia) se encontra com o seu Benê (biografia), um homem que, por algum motivo biográfico, desenvolveu a liberdade pessoal e a segurança que não lhe impediram de se apaixonar por uma mulher numa cadeira de rodas. E tal fato foi possível por eclodir num tempo histórico em que um tal relacionamento é tolerado, talvez até aprovado. Tivesse tal amor desabrochado em famílias japonesas lá, mas também aqui, e o sofrimento estaria encomendado. Não sei se ainda hoje, mas até pouco tempo, numa família japonesa mais tradicional, a filha deficiente não poderia se casar e reproduzir, e, com freqüência, condenaria suas irmãs ao eterno celibato. E me deu grande saudade da querida Sueli, e fazem tantos anos que não a vejo, uma filha de japoneses, uma inteligência privilegiada que pôs a nocaute uma paralisia cerebral que se meteu em seu caminho.

Renato, peço a você, e ao eventual leitor, uma última gota de paciência. Contarei mais um pequeno episódio meu, tentando reforçar a idéia de que falar de deficientes é falar de pessoas específicas, com histórias específicas, que têm a deficiência como um aspecto que marca suas vidas de forma mais ou menos determinante, conforme o caso. E que cada caso só será compreendido percebendo-se como foram se construindo as possibilidades ou impossibilidades de uma vida, num determinado tempo histórico.

Chego eu na porta de um restaurante. Estaciono meu carro meio chic, cinza, automático, ano 2000, me transfiro para a cadeira de rodas e sigo em frente com minha mulher e meu filho, ambos aparentemente saudáveis e felizes. Por atração de estranho magnetismo, meus olhos se cruzam com os de um moço que, em surrada cadeira de rodas, vende chicletes no sinal (farol ou semáforo, em outras plagas). Negro, pobre, deficiente, maltratado pela vida. Pensei, de relance: "se ele for analfabeto e gay estará fechado o círculo da exclusão mais cruel e impiedosa". Tento um sorriso. Ele balança a cabeça, sem aliviar a tensa rigidez do rosto. Sinto o seu olhar percorrendo aqueles 30 ou 40 metros que nos separam, e sinto que, em alguma proporção que não consigo precisar, ele me contempla com uma expressão de admiração e mágoa, talvez uma pontada de ódio. Ele empinou a cadeira, deu meia volta e se afastou por entre os carros. Naqueles parcos segundos, ele não acreditaria, talvez pensasse em deboche, eu o invejei. Invejei suas habilidades com a cadeira, sua coragem pessoal, sua luta, que imaginei obstinada, pela sobrevivência.

Éramos ambos deficientes físicos, mas os outros aspectos ou faces de nossas respectivas existências haviam criado aquele abismo imenso. A solidariedade entre nós, para se estabelecer, teria que vencer vários obstáculos. A deficiência nos teria identificado não fossem tão opostos nossos mundos. Um dia desses, talvez, nos encontremos numa manifestação pelo rebaixamento das calçadas, ou na campanha de algum político deficiente físico, ou com base nas entidades representativas dos deficientes. O importante, Renato, é que se continue lutando pelas causas dos deficientes, esses entes envolvidos por direitos e deveres, mas que não percamos de vista um fato: eles só serão atraídos para a luta comum se sentirem os movimentos como capazes de penetrar e reordenar as próprias e específicas biografias.

2 comentários:

  1. Revisão histórico-patriota: tira esse acento do meu Xingu aí, cara pálida!

    Cacique Juruna

    ResponderExcluir
  2. Postagens! Queremos postagens!!!
    Impossível viver com essa ração mínima que você tem nos fornecido, queridão!

    Beijos libidinosos,

    da sua gaylera da SUIPA
    (Sociedade Universal de Idolatria ao Paulim Afrodotado)

    ResponderExcluir