segunda-feira, 30 de setembro de 2019




Na minha meninice, as avaliações de nossas vidas se davam em algum SNI ou CIA celestiais. Só nos restava o medo. Por lá ficavam os tribunais que nos encaminhariam para o céu, o inferno ou um tempo como trainee no misterioso paraíso. Implacáveis.
Hoje, rindo sozinho da invasão das bonequinhas eróticas nas minhas telinhas, pus-me a matutar sobre quão mudadas andam essas coisas do destino.
Nossas vidas hoje são avaliadas, em tempo real, e em estonteante dinâmica, nas catacumbas onde mourejam os donos do mundo e seus insaciáveis bancos de dados. As sentenças e seu cumprimento trafegam à velocidade da luz.
Sem esquecimento. Sem perdão.
Acabamos por ser o que querem que sejamos, senão acabaremos desconfiando de nós mesmos. Claro que amanhã seremos outros, se disso os sintetizadores se convencerem.
Pensei nas minhas bonequinhas sexys, e já temo encontrá-las debaixo do travesseiro, na água do banho, na sopa, e até no já invadido recôndito dos sonhos.
Tentei deduzir a lógica dos porões onde as máquinas decidiram por tais mini atrações fatais. Velhote, assanhadinho, olhando essas coisas na madrugada, viúvo, virtualmente carente, dado a devaneios... bingo! Não tem erro. Bonequinhas nele. Até quando, meu pai Oxalá?

quarta-feira, 4 de setembro de 2019


Mega mico, hoje no Minashopping. Perguntei pelo banheiro adaptado, a moça da segurança me encaminhou.
Cheguei na porta onde se lia: EXCLUSIVO PARA PORTADORES DE NECESSIDADES ESPECIAIS.
Como eu só pretendia um xixi, já latejante, pensei: xixi, ao que eu saiba, não é nenhuma necessidade especial, mas encarei ali mesmo.
Aperto um botão, uma voz vinda do além pergunta o que foi. Só quero entrar no banheiro, disse eu, já temeroso com os efeitos deletérios daquela demora. Um estalo, e a porta se abre.
Ufa! Entrei. Aliviei. Lavei as mãos e fui abrir a porta. Digo, tentar. Empurrei, sacudi e nada.
Como não era muito sedutora a perspectiva de passar ali minha noite, embora estivesse até cheirosinho e com musica, não resisti à tentação de testar um botão, ao lado do vaso, contornado pela inscrição EM CASO DE EMERGÊNCIA, ACIONE O BOTÃO. Achei que era o caso, e mandei o dedão. Pra quê... seria menos traumático ter passado lá uma noite semi-tranquila.
Um alarme ensurdecedor invadiu aquela área do shopping. Juntou algumas pessoas, uma tensão se espalhava no ar.
Foi quando o rapaz da faxina, acompanhado por dois seguranças, abriu a porta por fora. Eu, mais assustado que eles saí de fininho, olhando pra trás, com aquela cara de “tá acontecendo alguma coisa ali, alguém tem ideia do que seja?”
Ainda demoraram um pouco a desligar o alarme escandaloso, e as pessoas tomaram rumo. E eu ali, disfarçando.
Foi quando o rapaz da limpeza me chamou baixinho, do alto de sua humildade, e me pediu para entrar no banheiro em sua companhia.
Com carinho e compaixão por meus cabelos brancos, me explicou didática e singelamente:
- da próxima vez, basta o senhor apertar esse outro botão, aqui ao lado da porta, que ela abre.
Mais não disse, e nem carecia. Recolhi-me à minha insignificância, e fui tomar um café expresso duplo. E pedi que fosse bem forte. Só pra ver se eu acordava daquela vergonha.
Bem feito pra mim. Quem mandou achar que não tinha necessidades especiais? Bobeira é deficiência.
Eu na dentista. Motorzinho zoando.
De repente, dou um suspiro profundo, seguido de um “ai, ai”.
A doutora para a maquininha, e pergunta:
- tá doendo?
E eu, ainda suspirante:
- não, querida. Foi só um espasmo de frescura!

Já não se fazem machos como outrora, né?

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Contra o ensino militarizado. Postado no FB em 29/08/19

Hoje, na visita ao Colégio Estadual, da qual falei antes, ao ver a moçada sentada na grama, namorando, tocando violão, feliz e falante, fui tomado pela certeza de que lutarei, mesmo com minhas frágeis armas, enquanto puder contra a tara da militarização do ensino fundamental e médio.
O Colégio agora funciona em tempo integral, o que pra mim foi agradável surpresa. Pude conviver com eles em aula, já que tive a honra de contar um pouco de nosso história para alunas e alunos que agora ocupavam a mesma sala que deixei em 1968, e durante o almoço coletivo, com eles se espraiando por todos os espaços, livres e aparentemente felizes.
Conversando com o diretor e o vice, gente finíssima, engajada num processo de criatividade e crescimento, olhando em volta, vendo registros de protestos e desejos, senti ódio dos portadores da tristeza e da morte do espírito livre, militaristas que só arrotam disciplina, medo e submissão. Se eles se impuserem, aí os danos serão irreparáveis por longo tempo. Se a esperança não tiver a juventude como aliada, ela estará condenada ao fracasso e ao desânimo.


Registro com a equipe de filmagem do documentário sobre o Clube da Esquina, do qual participei hoje. Atrás de mim, os velhos amigos Marcinho Borges e Murilo Antunes, e sentada, em primeiro plano, a fantástica Ana, diretora e chefona do projeto. Devo estar sendo parcial, mas prevejo um filmaço, cutucando as encruadas memórias mineiras.

Filmagem do doc sobre Clube da Esquina, no Colégio Estadual, em 29/08/19



Ah, quanta honra. Uma foto que guardarei como um troféu por um dia feliz, de imensas emoções. Filmagem do documentário sobre o Clube da Esquina, ontem, 29/08/19, no Colégio Estadual.
Sem viés ideológico (viu, Bozo? Viu, Zema?), da esquerda para a direita, a Ana, diretora do filme, o Rodrigo, o Reinaldo (respectivamente vice e diretor do Colégio, gente de primeiríssima), o Zé Roberto, produtor do filme e filho do meu mano véio Marcinho Borges, que vem em seguida, e, encerrando a fila, o Eduardo Moraleida. Sentado, curtindo essa moleza, esse que ora vos fala, e que uma amiga disse há pouco que está a cara do Claude Monet (claro que sem o talento).

No Colégio Estadual, 50 anos depois.



Hoje, depois de meio século, voltei ao lugar onde vivi os melhores, mais encantadores e produtivos três anos de minha já longa vida. O Colégio Estadual Central, em Beagá, e os anos foram 1966,1967 e 1968.
Tendo sido convidado, pouco gentilmente, a abandonar o Colégio Marista, transferí-me para esse paraíso. E ali, mesmo naqueles anos de chumbo, ou talvez por isso, encontrei a diversidade, a inteligência, professores e colegas me ajudando a moldar meu caráter e a juntar os valores, especialmente humanistas, que ainda carrego comigo.

Essa manhã voltei lá, convidado a participar de um documentário profissional que está sendo realizado sobre o Clube da Esquina, uma de minhas praias de então. Em companhia do Márcio Borges e do Murilo Antunes, mergulhei de cabeça nas lembranças e nas experiências que faziam dali, nosso recanto comum, um vulcão de arte e de política, que espalhou suas lavas sobre aquele tempo.
Voltei à minha sala, conversamos com grupos de alunos, refizemos para as câmeras as trajetórias de então. Chorei que nem uma carpideira do sertão nordestino, disse à moçada que nos seguia, curiosa, muitas palavras de esperança pelo futuro que eles saberão construir, honrando a história do nosso Estadual.
O pequeno vídeo em anexo retrata minha entrada emocionada naquele espaço encantado, e a repetição do agradecimento, que um dia fiz cara a cara e diante de um auditório lotado, ao modesto Niemayer por ter colocado no meu caminho uma rampa que mudaria o meu destino, e não uma escada, que impediria tal alquimia. Ele deu um leve sorriso.
Meio sem treino, como tenho vivido, curto agora uma baita ressaca por tantas emoções.

E o Clube da Esquina? Postado no meu FB em 31/08/19

Como andei falando muito sobre o documentário do qual participei, no Colégio Estadual etc, a amiga Adriana Saldanha Guimaraes perguntou num comentário: "E qual sua história com o Clube da Esquina?"
Reproduzo o que respondi lá:
"Adriana, sabe que nem sei. Convivência com queridos amigos durante um tempo da vida, e depois mais esporadicamente. Colega do Marcinho Borges, amigo e admirador do primogênito Marilton Borges (o mais musical da família, em minha opinião), a frequência naquela casa sempre agitada e cheia do Salomão e Maricota, Estadual, Maletta, CEC, Imprensa Oficial. Uma Beagá mais provinciana e calma, onde as coisas se misturavam sem grandes projetos, com poética singeleza. Não raro estavam na casa de meus pais, no Carmo, personagens que aos poucos eu veria mais e mais nos registros da mídia: Bituca, Toninho Horta, Fernando Brant, e tantos outros. Uma foto minha na capa interna do LP Clube da Esquina me batizou como membro daquela comunidade que ganhava o mundo. Fui morar no exterior, depois viver na UFMG, e os caminhos correram como paralelas que vez ou outra se encontram. E restaram lembranças, muito amor e amizade. Seu saca-rolhas é bom. Acho que nunca falei tanto sobre isso".

Em gratidão ao mano véio Marcinho Borges

Ainda sobre minha vivência e convivência com o Clube da Esquina, assunto que me deixou matutando a partir da participação no documentário sobre o movimento, em tomadas filmadas no Colégio Estadual, e a partir da despretensiosa pergunta de uma amiga, por aqui. Descobri que eu não sabia o que dizer.
O sentimento que sobreveio nessa matutagem foi o de gratidão, e em especial por uma figura bem central não só no movimento, mas também em minha vida. Em especial na virada radical que eu tentava dar a ela quando entrei no Estadual, e me joguei no mundo, tentando desconhecer as perenes dificuldades de locomoção.
Apesar de pouco mais velho que eu, o Márcio Borges era essa figura, a quem chamo de mano véio, um amigo mais que querido. Com o passar dos anos, e com os rumos das respectivas vidas, a gente foi se encontrando mais e mais raramente, quase um nada. O que não abala o tanto que gosto e curto esse cara falador e de inteligência ágil e brilhante.
Ele vai achar esse papo meio esquisito, mas naqueles anos de maior convivência ele foi, sem pretender, nem posar como, uma referência para a minha redescoberta do mundo, em especial do mundo sensível. Só não digo quase um guru, pra ele não exagerar na máscara.
Em longas e boas conversas, muitas vezes em grupos, em botecos, ele me inoculou a paixão pelo cinema, que inda carrego, me aplicou em fundamentais da literatura mundial, coisa distante de um egresso de educação marista, e curtimos muita música, e essa era uma paixão que eu carregava desde menino, e ainda carrego, sempre fiel aos pilares de nossa magnífica música popular. E aqui penso em Luiz Gonzaga, Caymmi, Ary Barroso, Pixinguinha e tantos outros que frequentam meu cotidiano.
Voltemos. São fascinantes e curiosas essas sínteses que, no matutar, adquirem rumos próprios, incontidos. Como se ficasse claro que minha vivência com o Clube da Esquina tem quase o molde de minha convivência com o Marcinho.
É certo que dali abri o leque, desdobrei em amigos, conheci boa parte da mais fina flor dos instrumentistas de então, vi poetas e músicos em efervescência criativa, aprendi muito e fui feliz.
Marcinho fez de mim um personagem no seu livro Os Sonhos Não Envelhecem”, e agora me convoca para o documentário. Isso me ajuda a compreender minha vida, e joga foco nesse mistério do amor maior que chamam de amizade.

Zapeando no tédio das manhãs

Após longa ausência, hoje fui zapear pelos canais abertos da TV, na programação matutina dirigida às donas casa, aposentados, desempregados e àqueles que por razões diversas, entregam suas manhãs à telinha companheira da solidão e do tédio.
Como professor, e em poucas investidas profissionais no mercado, sempre fui próximo ao tema e a seus desdobramentos, mas isso não reduziu a perplexidade com o que vi essa manhã. Um circo de horrores comerciais, explodindo todos os limites do que um dia foram conquistas, até de ordem legal, no que se pretendia defesa do cidadão e do consumidor.
Sem diferenciação de classe social, apenas de qualidade e preço dos produtos, mais ou menos a mesma aberrante estratégia ocupava todos os principais canais. De Edu Guedes a Fátima Bernardes, da Record à Band, o criminoso assédio à auto-estima, em especial das mulheres, mas não só, descortinava a certeza que os últimos resquícios de ética haviam ficado nos bancos escolares, ou, mais provavelmente, sufocados sob os contratos nos departamentos de marketing e merchandising das emissoras.
Testemunhais, até do vendilhão Louro José, empurravam para os do lado de cá das telinhas (hoje, telonas) a culpa pelo sentimento de fracasso pessoal, ou de infelicidade. Quem mandou não usar o creme X, ou se empanturrar com a vitamina Y? Quem mandou não superar seus limites, e se tornar empreendedor(a) como a jovemZ, que saiu da favela e hoje é líder mundial na depilação das partes íntimas dos homens modernos?
Não me refiro aos comerciais, nos devidos e legalizados formatos e horários, mas à diabólica mistura entre os personagens de sucesso, ricos e famosos, e os produtos que quase acidentalmente se espalham pelo cenário, e sobre os quais se contam encantos testemunhais em pequenas intervenções. E que, por serem mais caros, talvez por serem ilegais, fazem a fortuna de apresentadores e reforçam o caixa dos patrões.
A legislação chegou a restringir isso fortemente, mas leva jeito dessas leis terem apenas saído de moda. Com o devido e sacana respeito, quando vejo a Ana Maria Braga injetar subliminarmente em seu público-alvo, a cada manhã, determinada mensagem, sinto o quão longe avançamos. Ela parece estar sempre dizendo, nas entrelinhas: “vejam eu, cento e muitos anos bem vividos, aparentemente ainda andando e falando, e isso se deve a essa vitamina aqui, aquele creme ali, e àquele produto acolá... que, desculpem, não estou enxergando sem meus óculos novos, da Ótica Carol”.