terça-feira, 12 de fevereiro de 2019


Minha finada patroa, que anda metida numa caminhada longa em demasia, carregava no peito uma excitante mistura de braveza e compaixão, ambas com frequência extremadas, que ela dissimulava com charme e elegância. Nunca, ou quase, perdendo a postura, o jeitão de uma, digamos assim, bela, recatada e da vida. Ela era tipo arroz é arroz, feijão é feijão, e quando tomava gastura de um alguém, ai, ai, ai, só uma junta de pacientes especialistas para tentar, eu disse tentar demovê-la.

Mas, para o bem da humanidade circundante, minha Flô foi sempre muito mais de amar as pessoas. Com paixão e disposição para defendê-las até dela mesma, se necessário fosse. E não se poupava. Nos lugares em que moramos, nesses mais de 40 anos, em uma semana já era beijinho pra lá, troca de receita pra cá, e a impressão de que nascera e fora criada por ali. E da empregada à madame, do lixeiro ao coronel, parecia uma coitadinha que só tinha um balaio pra carregar todas as coisas, juntas e misturadas.

Essa era a mulher que tanto amei. E sempre amarei.

Como isso é mais forte que eu, essa falação pescou um caso nas lembranças. Um caso curtinho mas que reflete bem essa minha deusa terrestre.

Numa daquelas tardes modorrentas, na porta do Rouxinol, onde estudava um pequeno Henrique, lourinho e sedutor, enquanto as crianças não atropelavam aos berros a pobre porteira que cuidava da saída, estávamos nós ali numa roda de conversa juntando muitas comadres e um ou dois compadres. Papo vai, papo vem, surgiu conversa daquelas de convergência unânime e imediata, sobre a sacanagem que é as pessoas não necessitadas ocuparem as vagas de deficientes, e por aí. Quem ousaria defendê-las? Ninguém.

Uma das mais excitadas, bem a seu estilo enfático, foi a nossa querida amiga S. Nossos filhos vinham juntos desde o maternal, e tínhamos uma certa intimidade e liberdade pra falar entre nós. Amigos. S. fez uma verdadeira pregação, todos admiravam seus ditos, e me apresentou como exemplo de seus argumentos, dizendo que sabia de meus apertos para estacionar. E foi que foi.

- Cooorta!!! Preparar para a próxima cena, no dia seguinte. E olha eu dando ares cinematográficos a meu caso.

- Claaaquete!!! Cena dois. Luz no ponto? Silêncio no estúdio. Rooooda!!!

Katinha e eu, no estacionamento do imenso Carrefour, na Pampulha. Devido ao horário, sobram vagas pra todo lado, com fartura. Virei o carro e me dirigi às vagas reservadas. Além de mais largas, elas ficam pertinho da rampa de subida. Preparo a manobra para estacionar ao lado de um carro que ali já se encontrava. Foi aí.

Katinha dona de extraordinária memória, especialmente se envolvessem números, deu um tapa no painel, e não vacilou pra levantar a voz, brava.

- Tico, pô, que maluquice! Esse carro é da S. E gente falou tanto sobre isso ontem.

- que nada Flô. É só parecido. Deixa pra lá. Vamos entrar.

- que deixa pra lá, nada. Vou deixar ao menos um bilhete.

- tá bom...

Cena três. Tendo descido a rampa, lá vinha a S., alegre e fagueira, com o carrinho cheio de compras, carinha de estar em paz com a vida. Quando ela chega uns cinco metros de nós, os olhos de S. se cruzam com os da Flô. Assustada, meio em choque, sem trocar palavras, S. olhou se não tinha um ralo em volta para mergulhar.

Aí, entrou em cena a curiosa personalidade de minha Flô. S. ensaiou inventar desculpas, mas conhecendo bem a Flô, desistiu logo. Seus olhinhos se encheram d'água. Olhei pra Flô, os dela também. Flô deu dois passos adiante e, encontrando a S. tornada estátua, a abraçou apertado. Muito apertado. Trocaram umas lágrimas. E saíram para o outro lado, uma com a mão no ombro da outra, conversando baixinho. Depois até riram.

Eu, que a essa altura já tinha me tornado parte da paisagem, cocei a barba, liguei o rádio do carro e fiquei matutando sobre a sabedoria da Rita que cantou que mulher é bicho esquisito.

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