sábado, 9 de fevereiro de 2019

Aos que não descartam suas cartas

Tépido é sinônimo de morno. E digo isso porque vou usar a palavra ali adiante, e talvez alguns já não se lembrem de seu sentido. E porque essa mania de ficar cutucando palavras? Primeiro, porque sabidamente sou um cara metido à besta. Já não engano ninguém. Mas também porque sou um cara de compaixões, muitas, e não suporto ver certas palavras lindas, mas tímidas, sentadas no salão dos dicionários sem que nenhum felizardo vá tirá-la pra dançar sobre as páginas brancas e sedentas. Uma covardia. Nessas horas, como faço aqui, humildemente me aproximo e pergunto se ela se dispõe a devolteios comigo. Eu prometendo, e nem sempre cumprindo, não lhe passar as rodas da cadeira sobre os pés. E se é um bolero, colo a boca em seu ouvido e sussurro, propaganda enganosa, que todo portador de necessidade especiais (eca, detesto essa expressão) pode portar também gostosuras especiais. Elas costumam ceder, e aceitam se despir em meus causos.

Estava eu, inda agora, enfiado num banho tépido, matutando sobre a vida (e, além da limpeza programada, os banhos servem para três coisas básicas: matutar, cantar e colocar em dia o para-casa libidinal) quando uma lembrança me deixou rindo sozinho.

A lembrança do dia em que um rapazote, aqui em casa, puxou um papo sobre cartas. Ele não imaginava, olhando de seu mundo de zaps, emails etc, como seria um contato entre pessoas distantes movido a cartas. Principalmente, como funcionava um mundo de cartas. Eu, que escrevi milhares de cartas, boa parte delas de amor, durante a vida, respirei fundo, e disse a ele que se sentasse, que eu iria tentar explicar. Senti-me um velho caquético (outra moçoila que aceitou bailar comigo), mas, talvez por orgulho, fui em frente.

- pense, disse eu, naquela bandeja de sushi que você leva para a balança, antes de devorar. Tá ligado?

- Tô ligado, disse ele rindo.

- cartas são como aquelas bandejas, e os sushis são as palavras. A gente pegava um papel e enchia de palavras, vez ou outra juntava uma foto, uma flor seca, coisas de preferência não pesadas, dobrava tudo aquilo no maior capricho, enfiava num envelope e se dirigia ao caixa, ou melhor, aos Correios.

- Correios eu conheço, Paulinho, também não é assim, né? Aquele lugar de entregar e buscar encomendas.

- isso aí, confirmei. Levando a carta aos Correios, logo quem nos atende saberá, na balança, nosso apetite de palavras. Cobrará o preço correspondente, e nós pagaremos. Igual o que você pagou por seus sushis. E aí põe nossa carta de lado, esperando o delivery.

- delivery?

- cartas nunca são consumidas no local, ou no balcão. O delivery leva as danadinhas, mais ou menos apetitosas, a mesas distantes, onde fregueses em geral ansiosos vão degustá-las em refeições quase sempre solitárias.

- acho que estou seguindo seu papo...

- a diferença, talvez fundamental, é que os sushis, após degustados, seguem seu nobre caminho fisiológico. As palavras não. Elas talvez, em sua digestão, lembrem mais a ruminação de uma vaca. E no fim do périplo digestivo costumam ser regurgitadas sob a forma de outras palavras. E tudo recomeçava. Ao menos era assim.

- zap também é assim. Só que mais rápido e curtinho, né?

- matou a pau, cara! Eu nunca conseguiria resumir com tanta sapiência.

- vou andando. Essa tal de sapiência fica pro próximo papo. Valeu.

De verdade. É impressionante como as coisas são fáceis de serem explicadas. Basta antes entendê-las, né?

Sobre o causo que estou devendo, e já virou novela, acho que o mofo que o envolvia quando tirei do freezer, já saiu quase todo. Logo logo será usado. Lembrando: o causo envolve a bela Pretinha, meu fusquinha amarelo e eu quase ter ido pro cemitério de cabeça pra baixo. E pensar nisso, entre arrepios, me remete ao apóstolo Pedro, crucificado de cabeça pra baixo, e dizem que por ordem de um juiz muito malvado e injusto chamado Sergivs Morvs, e por ter se recusado a assinar uma tal de delativs premiatas. Loucuras da antiguidade.

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