sábado, 2 de janeiro de 2010

Lamas da memória num Ano renascido

Se existe, como existe, a memória afetiva, certamente existirá algo como uma, digamos assim, memória efetiva. O estímulo externo se intromete despretensioso, e, como se do nada, torna-se um soco no peito. Não produz o abafamento tão conhecido pelos apaixonados ou saudosos, mas traz de volta uma aflição medonha, como se um fato vivido, ou presenciado, ameaçasse se repetir, e sem nenhuma razão objetiva ou aparente. Algo como um pesadelo relâmpago que nos surpreende acordados ao ver, como no presente caso que me toca, imagens na TV e nos jornais.

Meados da década de 1960, lá fui eu com uns amigos de colégio, e adjacências, encontrar o mar. Não me lembro se foi meu primeiro ou segundo contato com o reino de Iemanjá, só sei que meu amor pelo mar se tornaria eterno e infinito, apesar dos tão, e cada vez mais, raros envolvimentos. No compartilhamento daquele final de adolescência, o grupo era puro ânimo e muita gentileza. Na certa, generosidade também não faltava, posto que minhas muletas e meus aparelhos ortopédicos certamente exigiam dos parceiros algumas constantes intervenções de apoio naquele ambiente adverso, e estranho para meus hábitos e treinamentos. Minha família não era afeita a férias e viagens, eu não tinha traquejo para tais convivências e enfrentamentos ambientais.

Ficamos instalados num velho casarão, secular, de largas paredes de pedra, porões, e piso de longas tábuas corridas que produziam aqueles ruídos singulares, ecoando os passos. As paredes brancas, as janelas e portais azuis, compondo a distinção devida naquele vilarejo habitado por pescadores e eventuais, mas não muitos, turistas. À pequena distância do mar, erguido numa pequena elevação, o casarão produzia na imaginação dos que por ali passavam reflexos de sua própria história. Logo atrás no vilarejo, a beleza da serra do mar num paredão íngreme, invadida por algumas extensas plantações de bananeiras, que, aliás, davam algum fôlego econômico à vida simples do lugar. Diziam que Monsuaba era uma corruptela do francês "bon soir!", e que fora assim que o lugarejo herdou tal nome, já que sua posição geográfica, como se na curva de pequena península, fizesse do sol da tarde o espetáculo inesquecível, e não do sol matinal, como na maior parte do nosso litoral.

O que aqui relato só brota dessa memória subitamente despertada em choque, na qual a imaginação e a fantasia podem ocupar lugar maior que o pretendido e desejado pelo relatante. O município que albergava tal paraíso era Angra dos Reis, RJ, e a tal localidade era bem vizinha dos estaleiros da Verolme, um monstro que parecia bem estranho aos pacatos rítmos da dita Monsuaba. Naquele verão, as chuvas intensas e persistentes arrasaram o vilarejo, as águas subiram, cobrindo e arrastando as construções em sua parte mais baixa, fazendo da praia um lamaçal, ao qual se misturavam restos de casas e de plantas, em especial de bananeiras que escorreram junto com parte do morro. Com a queda das pontes de acesso, o vilarejo ficou em completo isolamento, moradores e turistas dividiram, amontoados, espaço nas casas e lojinhas mais altas, e a comida ficou racionada até que ajuda mais efetiva chegasse, um ou dois dias depois, por mar. Lembro-me que todos lamentavam muito a morte de uma senhora, muita querida, vitimada por uma viga de sua casa desmoronada.

Naqueles dias de sol que antecederam a catástrofe, o que mais se ouvia no rádio era outro explosivo sucesso de Roberto Carlos, "A Namoradinha de um Amigo Meu". Porque me lembrar disso? É que, justamente, a música fazia uma crônica cruel do que se passava comigo, envolvido que eu estava, meio clandestinamente, com a namoradinha caiçara do amigo que me convidara para tais dias inesquecíveis. Ela, menina bonita e sestrosa, filha de pescador, que via no verão a chance de se ampliar no mundo; eu, com os charmes específicos que a deficiência física sempre fora ensinando, ostentanto um rabo-de-cavalo raro para a época, e usando um sorrisão como arma secreta, usufruindo do tempo extra de vagabundagem que eu gastava por ali mesmo, à sombra das árvores, enquanto a turma fazia passeios e caminhadas que não me eram acessíveis. Acho mesmo, e me perdoem a arrogância, que o ambiente encantado do lugar se compatibilizava mais com minha quietude que com a desperdício exacerbado de energias daquela rapaziada, mas, a chance de ser puro despeito não deve ser desprezada.

Era na casa de tal cobiçada donzela, a noite já tendo imposto seu manto, que eu estava quando a tempestade caiu de vez. Casa simples, de alvenaria, construída na beirinha da areia, quase sem diferença de nível com o mar. A água se infiltrando por debaixo das portas, e as imagens revêm com nitidez, marcou o primeiro alarme. Raios, estrondos, as águas não paravam de subir. Senti a barra ao ver o nervosismo na face daquele homem experiente, forte, domador dos medos da pesca. Ele decidiu que levaria a mulher e os filhos para a parte mais alta do lugar, e que voltaria com ajuda para me resgatar. Eu explicara a ele a dificuldade de meu deslocamento em tal situação, inclusive pelo peso dos aparelhos metálicos que me envolviam as pernas, e de minhas inseparáveis muletas, à época Sucupira e Rosa Amélia (posteriormente elas foram rebatizadas algumas vezes, inclusive homenageando mães de amigos). Tomou ele, ainda, a iluminada providência de me deixar em pé sobre a cama de casal, onde eu teria ao alcance das mãos umas peças de madeira para me sustentar, caso a coisa piorasse. E foi o que aconteceu.

É inacreditável como as catástrofes podem evoluir como se elidindo a dimensão do tempo, em especial para quem se surpreende diretamente no alvo. Os clarões que os raios produziam lá fora me faziam ver o quanto e quão rápido as águas e a lama subiam. A base da janela do quarto já sumira sob tal maré. A água envolvia minhas pernas, eu nem via mais a cama sobre a qual me mantinha. Achei que era o fim, e pelo que me lembro, talvez aqui a memória se predisponha mais ainda a dar ares dramático ao roteiro, senti-me calmo, ao menos desespero não havia.

Para os que, como eu, não transitam no sobrenatural, conto em paradoxo: vozes de anjos invadiram aquela solidão em que me encontrava. "Ei, companheiro, aguenta firme... fica calmo... a gente veio te buscar", e, felizmente, não eram vozes de nenhum além. Eram dali mesmo, de gente corajosa e solidária. Entrou o primeiro cara pela janela, amarrado a uma corda, e com outra para me amarrar. A gente só se via quando os raios faziam luz. Logo um outro se postou no vão da janela, estendendo a mão. Ao todo eram quatro ou cinco homens, gente dali. Quando ele passou a corda em volta do meu peito, pois não havia outro modo para enfrentar correnteza tão feroz, abracei-me às muletas com um dos braços, e deixei o outro ser puxado. Vem aqui, nesse ponto da lembrança, um tremendo turbilhão: os caras gritando entre si, água entrando boca e nariz adentro, as costas se escalavrando, sem profundidade, numa cerca de arame farpado que boiava entre grandes folhas. E puxa, e puxa, e vai, e grita, e puxa... e eis que de repente, não mais do que de repente (parafraseio o poeta...) terra mais ou menos firme sob o corpo. Fiquei um pouco deitado na escada de uma casa, sob chuva, agarradinho às muletas, sentindo-me mais inteiro que nunca. Aqueles homens comemoraram, me abraçaram, se abraçaram, e logo me carregaram para uma espécie de bar/mercearia, onde já estavam meus amigos de viagem, aflitos, e boa parte da população do lugar.

Mas a alegria, que era só minha, quase obscena em meio a tanta desgraça, não terminara. Pouco tempo depois, não sei quanto, eu ali me refazendo, tendo tomado uma pinga, comido algo que me deram, uma voz me conclama apavorada: "porra, olha lá o que virou...". O próximo relâmpago revelou a cena. Pelo que dava pra ver, apesar da distância não ser longa, daquela casa onde eu estava só sobrara a base, os alicerces. A luz no amanhecer seguinte tirou qualquer dúvida. Demorassem mais algum tempo, na certa pequeno, aqueles anjos caboclos a me buscar, e na certa me encontrariam nas misturas daquele lamaçal que só dias depois passou a ser revolvido. E essa lembrança agora me emociona, muito, me deixando em estado de fusão solidária com os que agora comemoram seus sobreviventes, ou buscam e choram seus mortos, talvez ainda sob a lama que invadiu a mesma Angra dos Reis, ou aquela que rasgou trágica cicatriz num dos paraísos da Ilha Grande. Na certa a entrada do Ano Novo, e esse tão especial pra mim, agravou esse aperto que agora sinto no peito.

5 comentários:

  1. Paulo,

    Santo Deus,

    Não sei mais o que comentar, pois a fraternidade que me vem das entranhas, sentindo-o pulsar, escrever, espiar de si e de nós desejos, dores, curiosidades, morbidez, ruminâncias de um ser tão vivido como você, tão inteiro, isso mesmo, inteiro, com tuas companheiras de "legno", pernas duplicadas, que carregam teu cérebro e coração, caramba, homem, me emocionam demais....demais....

    Tenho ganas de ler-te com a vontade de aprendiz, com a coragem de irmã, com a humildade de próxima bem próxima e com a alegria de ser gente, animal pensante, vivente e agente...

    Escreva, escreva-nos, escreva-se sempre, por favor.

    Grata, mais uma vez...

    Adoro o que escreve, deste modo, adoro você.

    Sim, opto por elogios rasgados, ante a minha incapacidade absoluta de ser-te par na arte de escrever. Sou tua espectadora, feliz, apenas.

    Um grande beijo.

    Giselle Zamboni

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  2. Do caralho, Paulim. Não só pela excelência da crônica em si, mas pela excelência do seu espírito neste ano que se inicia como se fosse tantos outros em que iniciamos juntos, mesmo que quase sempre à distância, ungidos pela força da nossa espirituosidade. E me lembrei que Baliza me falou que a menina de Beagá que morreu anteontem na Ilha Grande era amiga de um dos irmãos dela. E me lembrei de outro irmão dela que sempre foi o nosso predileto. E como aquele sacana já não pode perguntar, pergunto por ele: Afinal, comeu ou não comeu a caiçara?

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  3. Pôxa Paulim, lí num fôlego só. Bom demais lêr seus escritos! Sentí nas entranhas!

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  4. Excelente texto, retoma os fios do que passou e se liga ao presente. Parabéns.

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  5. Caro Paulinho,

    Que texto maravilhoso, íntimo e ao mesmo tempo generoso. Linha após linha fui percorrendo prazerosamente e quando percebi que estava no último parágrafo desejei que continuasse, que o texto não terminasse. Crônica extraordinária!

    O Tuca, que aí em cima comentou, indicou-me teus escritos, confiei nele e vim. Devo agradecê-lo, serei teu leitor; e como disse a leitora Gisele, escreva sempre!

    Um forte abraço,

    Ricardo.

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