Há 20 anos, o povo alemão derrubava o muro de Berlim. O mundo parece estar fazendo disso um dia de festa e reflexão. Vejo na TV uma Berlim chuvosa e muito iluminada, nas ruas lotadas uma euforia contida. A Guerra Fria acabou (ou deu um descanso, diriam os mais pessimistas), e para as novas gerações ficou, por vezes acho, o sentimento de que se trata de histórias de velhos, nostalgia a serviço de vidas onde o passado sobrepuja as intenções do futuro. Alguma razão elas devem ter. Mesmo sob tal risco, carrego a memória à Berlim que conheci, naqueles idos de 1975.
Morando em Louvain, na Bélgica, onde me pós-graduava em Comunicação Social, e tentava me aliviar um pouco das agonias que a ditadura militar impusera à minha geração estudantil (estávamos em plena era Médici), decidi conhecer de perto o tal muro que dividia dois mundos, e que dividia, também, opiniões, naquele tempo onde ideologia e política ocupavam lugar de honra nas mesas dos infindos papos. Revisei meu DAF vermelhinho, carro holandês miúdo, econômico, automático, e engenhosamente adaptado para deficientes físicos: eu andava, então, com muletas, só há uns 10 anos, pouco mais, me estabeleci como cadeirante. Fiz todo tipo de bico tentando juntar um extra, já que a bolsa que eu ganhara da Universidade Católica de Louvain só garantia, na continha, comida e alojamento. Um xará e amigo paulistano gostou da idéia, arranjou mais um amigo, e embarcamos os três rumo ao desconhecido.
Para se chegar a Berlim, por rodovia, talvez alguém não saiba, era necessário atravessar um bom pedaço da Alemanha comunista. As informações sobre as dificuldades burocráticas e policiais, para se enfrentar tal trajeto, produziam calafrios.
Mal imaginávamos que as dificuldades começariam bem antes. Como havíamos optado por transitar, sempre que possível, através de caminhos que fugissem aos roteiros mais turísticos, chegamos à Alemanha ocidental passando pela fronteira com a Holanda. Erro quase fatal, em especial num país, já de si paranóico, ainda traumatizado pelos atentados contra os atletas israelenses nas Olimpíadas de Munique, em 1972. O policial parecia não crer no que via, naquele pequeno posto de fronteira: três brasileiros jovens, cabeludos e barbados, num carro belga, naquele canto meio isolado do mundo, incapazes de pronunciar uma frase que fosse em alemão... saiam do carro, mãos pra cima (o que minhas muletas faziam impossível, e foram compreendidas...), dirijam-se àquela cabine. A mímica, com uma arma na mão, era amplamente compreendida.
Daquele aquário onde fomos colocados, todos os nossos objetos pessoais espalhados numa mesa, vimos o meu carrinho ser revistado nos mínimos detalhes. E, ostensivamente, deixavam bagagens e utensílios espalhados no gramado ao lado. Esperamos bem umas quatro horas, sem direito nem a água, até que aparecesse um oficial do exército que falava um francês bem truncado, mas que, na situação, soava como música. Caprichado interrogatório, a simploriedade das respostas parecia absurda. Porque tão pouco dinheiro vivo? Fazer o que em Berlim? A programação de cada dia da visita, o que nos levava a altos exercícios de imaginação criativa. E, o mais complicado, porque aquele porta-malas com barraca, fogareiro a álcool, e tantos pacotes de sopa e macarrão, instrumentos de cozinha, e tão poucas peças de roupas para troca?
A liberação ainda demoraria bom tempo, e só veio depois de manifestarmos desejo de falar com o Consulado etc, e nos foi dado prazo de dez ou quinze dias, não me lembro, para fazer toda a viagem, e abandonar a Alemanha. Avisaram, também, que estaríamos sendo observados. E, como se parecesse pouco, veio a humilhação final de arranjar de novo aquela tralha no carro sob os olhares, e as imprecações, dos motoristas alemães interioranos que circulavam por ali.
O bom de um tal aperto é que depois tudo parece mais fácil e bonito. Atravessamos as auto-estradas da bela Alemanha ocidental (trechos que eu conhecera em viagens anteriores), até nos depararmos com a fronteira interna que nos introduziria ao misterioso e mítico mundo comunista. Fomos, de modo seco mas cordial, abordados por um casal de policiais que pareciam saídos de um daqueles filmes de espionagem passados na antiga União Soviética. Longos casacos escuros e aqueles bonés peludos, cujos protetores de orelhas ficam amarrados dobre a cabeça. O bom-humor e as piadinhas já haviam retomado seus postos entre nós. Em menos de meia hora já rodávamos na auto-estrada que levava a Berlim.
De mais estranho só a carência de traços daquele velho capitalismo que forjara nossas percepções, expectativas, e nossos gostos. Estradas e postos de serviços sóbrios, sem maiores apelo ao consumismo e a seus encantos. De constante só os carros da onipresente Polizei: era a gente parar, ou sair da rota para matar alguma curiosidade, e eles davam as caras, sem nenhuma preocupação em dissimular a companhia.
Chegamos a Berlim quando a iluminação feérica da cidade já impunha um contraste chocante com o mundo do qual emergíamos. Ao volante de meu carro modesto, mergulhei excitado e tenso por entre avenidas e placas que só agravavam minha desorientação. Era a mais agitada dentre as cidades da Europa que eu já pudera conhecer, impondo ares abusadamente cosmopolitas aos viajantes que chegavam de todo o mundo, a quase totalidade por via aérea, uns tantos por ferrovias, e, como demonstravam as estradas vazias de carros de passeio não orientais, bem poucos através das super controladas rodovias.
Não demorou para que o espetáculo de tantas luzes mostrasse seus sentidos perenes e agressivos. Era a face mais ardilosa da guerra cotidiana entre dois mundos ali representados, naquela Berlim que não abrira mão de ser vista como um dos centros do mundo. Nos dirigimos ao muro com ansiedade quase infantil, e partilhamos o sentimento de opressão expressado pelo paredão com ares de obra semi-acabada, irregular, escuro, com aspecto de ruína em alguns trechos. Acho que nem conseguimos dormir. Pela manhã iríamos à procura da minha amiga, em verdade uma mera conhecida, para os padrões afetivos europeus.
Ela vivera um tempo no Brasil, falava um bom português, e eu a conhecera na Bélgica, numa daquelas histórias de amiga da amiga que, por agrado e empatia, se cola no nosso querer poucos momentos após. Foi com ela, e com seus casos, que percorremos as curiosas e trágicas histórias daquela violência bem mais que simbólica, e que estava, então, bem na metade de sua imprevisível existência. Explico-me: o muro fora construído há 14 anos, e -quem ousaria prever?- outros 14 anos se passariam até sua queda. Lá, contemplando-o a poucos palmos do nariz, ele parecia eterno e irremovível. A frágil paz mundial da época, obra da Guerra Fria, latejava entre aqueles montes de concreto, salpicados de sangue e graves lembranças. Mesmo para quem, como eu, vinha de um Brasil submetido à violência das armas ditatoriais, incomodado por amigos e sonhos mortos, o muro só espelhava insensatez e barbárie.
Como alguém que se queria, e se quer ainda, de esquerda, tentei racionalizar e compreender o sentido político daquela monstruosidade. Tarefa impossível. Dali tirei lições que nunca mais me abandonaram, e, quando em 1989 acompanhei pela TV a queda do muro, não tive dificuldade em me sentir lá, de marreta na mão, ajudando a açoitar a estupidez humana.
Durante uns quatro ou cinco dias, intensos, atravessamos com a amiga boa parte da desafiadora e misteriosa Berlim. Clareava o dia, e lá íamos em busca de lugares e histórias daquela cidade quase habituada, se isso é possível, às graves crises e tensões. Dedicávamos especial atenção aos episódios provocados pelo muro na vida de praticamente todos os moradores. Nunca esqueci daquelas caras que, nos mirantes erguidos junto a alguns trechos do paredão, olhavam rumo ao nada, silenciosas, os olho vazios de esperança. Muitos abanavam insólitos lenços brancos, talvez na esperança de serem vistos e entendidos.
Minha amiga, sendo boa alemã, falava pouco de si, discretamente. De uma história sua me lembro bem: ela havia assistido aula pela manhã, naquele distante 1961, e combinara com sua melhor amiguinha um encontro à tardinha, para brincar e conversar. Na hora do almoço, soldados russos e alemães fecharam a avenida que ficava entre as casas das duas, Primeiro, a rede de arame farpado. Logo depois, a construção do muro. Elas nunca mais tinham conseguido se ver, ou se falar, e minha amiga, mesmo tanto tempo passado, narrava isso com incontida amargura. Hoje, quando nada mais sei sobre elas, torço para que os contatos tenham sido reatados, e que ainda consigam, sobre os cacos do muro, rir de tamanha insensatez, inclusive porque melhor bâlsamo não pode haver.
Quando escurecia, era chegada a hora do que havia de melhor na música mundial, sempre ao vivo, muitas vezes de graça, e de se imaginar os prazeres da festança gastronômica presente em cada esquina. E só imaginar, já que os dinheirinhos somados só davam conta, proibidos os imprevistos, das despesas com a volta para a casa.
Retomei a vida. Conclui os estudos. Voltei para o Brasil um ano e meio depois. Reassumi os deveres e os prazeres da vida de professor, contei muitas dessas histórias para meus alunos. Agora, aposentado, vendo as comemorações dos 20 anos da queda do muro de Berlim, fiquei aqui ruminando algumas de tais lembranças. Respinguei o assunto nos poucos toques do Twitter. A parceira de rede, Gizelle Zamboni, se interessou, até sugeriu uma crônica. Aceitei o desafio, cutuquei esses subterrâneos, espalhei, na tela, trechos dessas memórias desordenadas... e, por ter balançado minha inércia, dedico a ela essas linhas (que, se a máquina permitisse, seriam mal traçadas).
Como seria fazer, agora, uma viagem como essa, pelos caminhos de terra de outra paisagem: a Palestina...
ResponderExcluirGrande Paulinho,
ResponderExcluirNarrativa que me engoliu em um segundo, a caneta e a lingua continuam afiadas e aliadas ao teclado...rs
Edu da Bahia
Meu lindo,
ResponderExcluirEssa Gisselle tinha que te provocar mais.
Aliás, nós todos.
Só pra você ficar contando história.
O que de resto,
vira uma profissão
que lhe cairia maravilhosamente bem:
um contador de História.
Emocionada, lágrimas espremidas do lado "esquerdista" do meu peito, leio tuas memórias, que doravante serão minhas...letras marcadas no coração de quem viveu, por segundos intermináveis, a dor das muralhas impostas à "diferença" e a alegria de tê-lo aqui, entre nós, "Professor Diferente", defensor da humaninade em nós, que nos faz tão iguais.
ResponderExcluirAbraços Fraternais.
Giselle Zamboni
Meu Querido! Que bom ler “Muros Da Memória”e todas as suas “Outras Memórias”. Continue, é bom demais! Grande beijo da Marçoca.
ResponderExcluirAh! Meu cumpadi, estou emocionada! Você é mesmo um contador de "histórias com o coração"
ResponderExcluircontinue escrevendo prá nós as que você tem guardadas aí! Também acho que é bom demais!
Beijão,
Ninha
agora eu também estou no mundo dos blogs!
ResponderExcluirun besito, livia.
bom demais Paulim!Memoriar, guardar revelando.Manda mais, bjs
ResponderExcluirPC,
ResponderExcluirPaulim sempre foi um grande contador de causos, coisa natural nesse povo de Saturno que fugiu só com os dedos mas não apagou da memória os anéis que rebrilham pelos grandes sertões de Codisburgo, terra do Guimarães Rosa também. O problema é que, como todo bom matuto mineiro, ele é de uma pachorra quase cachorra...
Qualquer hora libero pro mundo a alcatéia de causos europeus dele, que tenho registrados em longas cartas que a solidão nublada de Louvain lhe impunha escrever para não pirar. Inclusive aquele da FREIRA COM OS DOIS ANÕES NA MONTANHA RUSSA, tá me ouvindo, sr. Paulo Roberto?
Abraços a todos os comentaristas, irmãos de fé saturnina!
Beijão no cão pachorrento