Arnaldo e eu éramos adolescentes, e mais que irmãos, amigos-irmãos. E fizemos boa parte de nossas formações pessoais, fortemente humanistas, conversando noite a dentro, sentados no murinho da casa na esquina de rua Boa Esperança (onde ambos morávamos) com rua Passatempo, no bairro do Carmo, Beagá. Então um bairro de classe média, de casas baixas, no máximo sobrados, construídas sem ostentações.
Para se ter uma leve ideia, e não é esse nosso gancho de hoje, quando mudei pra lá corria o ano de 1949, e eu tinha um aninho, já paralítico e enfiado em tratamentos... existiam apenas três casas naquele primeiro quarteirão, a partir da rua Montes Claros. Diante de minha casa um campo de futebol, vacas pastando pra todo lado, e sob a janela, onde eu viveria grandes momentos, o caminho em meio ao mato, que levava à igreja do Carmo, ao tempo construção tosca e pequena. Ai, ai, ai, outros e outros causos.
E lá estávamos, Arnaldo e eu, uns 13 ou 14 anos depois do momento contado abaixo. Ele, filho de conhecido líder comunista, servidor nos institutos (como se denominavam o IAPC, IAPI, IAPTEC etc, antes de se juntarem), o João de Deus (sic) Rocha, o Rocha. Eu, filho do dr. Jacy de Britto Figueiredo, odontólogo, simpático à UDN e fã do Lacerda, muito careta e bem preconceituoso, bom de papo, mas enjoado quando implicava com algo, e como implicava. As mães, mulheres fortes, são outras histórias.
Conversando, rindo muito, esticando papos com outros amigos da turma de rua. Nenhum tão próximo, nem tão íntimo. Uma de nossas especialidade era filar cigarros, um ou dois, de passantes, e do coitado do guarda-civil que, ali, andava pra lá e prá cá, se protegendo do sereno apenas com um cassetete e um apito, que nunca vi apitar, zelando pelo sossego de um figurão, procurador geral do Estado, morador da casa ao lado. Figurão, mas de vida incrivelmente simples e modesta se vista pelos padrões e arrogância de hoje.
Levávamos para nossos papos a cosmovisão de duas casas parecidas, mas totalmente antagônicas. Acho que foi desde então que me interessei pela curiosidade, e pelo respeito ao que o outro tem pra me contar, e que eu ainda não sabia. Descobri que não havia estupidez maior e mais inútil que o invadir o momento da fala alheia, e mesmo depois de seu término, com a voracidade de ocupar os espaços e atenções. Tipo "ah, precisa de ver eu...", "mas se fosse eu...", "comigo isso...", "lá em casa então..." e o terrível, danoso e irritante "eu avisei... eu avisei... eu avisei". A fala do outro, seja qual for, sempre merece ser ouvida, digerida, meditada, mesmo se em segundos. E que a ela se deem as suites que elas mostravam carecer. E não devemos ter medo, nem ansiedade, nossa hora chegará, e será uma delícia ser ouvido, digerido, meditado.
Justiça gosto de fazer com os que, àquela época, gostavam de nos ensinar, de nos ouvir com respeito e seriedade, de pesar nossos argumentos, mesmo se não raro singelos, e contrapor ensinanças, lições de vida. O Rocha, pai do Arnaldo, com certeza foi bom mestre sendo bom comunista. Nos dava leituras mais teóricas, discutia argumentos. Era talvez excessivamente sisudo nessas horas. Mas um grande pra nós, ali, com bola no chão, foi um vizinho dele, pai de duas grandes amigas, e dois rapazes, que era visto pelos pais da redondeza como meio maluco beleza. Daqui a pouco vou cutucar a filha dele, grande amiga nesses redes, e que hoje vive nos States. Ela, sem ciúmes, sabe o quanto amei e aprendi com seu pai. Élcio Camões de Oliveira, funcionário também dos institutos, pintor que não atingiu a fama, discípulo e amicíssimo do velho Alberto da Veiga Guignard (Eduarda Pacheco entende disso) e que me deu a honra de pequena convivência, em Ouro Preto, com o guru da pintura mineira. Élcio, homem forte, saia de casa apenas de camiseta, não usual à época, ia nos encontrar naquela esquina, sentado com gente no murinho e na calçada, e gastava parte de seu tempo, até noite, mergulhado com o Arnaldo e comigo em grandes conversas, ou em longos e contemplativos silêncios. Foi ali, entre nós, que descobri, para sempre, que Deus era uma balela cuidadosamente esculpida pelos homens dominantes, mas, em compensação, foi ali que aprendi, também pra sempre, a contemplar e amar o cosmo e o infinito, e aprendi a amar o reflexo desse amor sem fim que brilhava a meu lado, no mais miserável menino faminto, ou assustado que me estendia a mão.
A meus olhos, Élcio era um grande humanista e libertário. E ainda o lembro assim, firme e pra frente, apesar da imensa provação que a vida lhe impôs, zelando durante anos e anos, muitos, pela Marisa, filha amada, então numa cama, em estado vegetativo. Eu também amava a libertária e feminista pioneira Marisa, linda, leve e solta. Se olho de hoje, não tenho dúvida de que a Marisa foi a amiga mais marcante que tive em minha vida (um detalhe: Marisa era unha e carne, naqueles dias, com uma vizinha que morava um pouco distante, meio sisuda e com fama de inteligente, chamada Dilma Rousseff). E que o Arnaldo foi o amigo mais marcante.
Sobre o Élcio, um registro que sempre gosto de fazer, por ter sido pra mim uma lição eterna. Estava eu meio macambúzio por alguma coisa que ouvira, quando ele, ali na esquina, me pegou pelos ombros e meteu os olhos nos meus, e mandou bala:
- Paulinho, atenção!, não aceite nunca a piedade alheia. E sabe porque? Porque a piedade é o gozo do medíocre.
Óbvio que o causo planejado, de uma travessura braba que o Arnaldo e eu fizemos, fica adiado por um tempinho. Por agora, apenas uma contextualização dos personagens. Não muito depois daquelas noitadas, a ditadura militar chegou com suas garras ferozes, e sobraram muitos arranhões para a dupla de amigos. O Arnaldo, um homem bonito e forte, absolutamente avesso às injustiças, um homem de ação, não demorou muito a cair na clandestinidade, militando na luta armada contra o regime. Eu segui vivendo, estudando, militando sem disciplina, de minha forma desorganizada, sempre tendo o anarquismo como sonho íntimo no peito.
Eis que na carreirinha chega o janeiro de 1973. Poucos dias depois de ter tido um contato ligeiro e hiper-clandestino com o Arnaldo, as balas do delegado Fleury e seus asseclas despedaçaram o corpo de meu amigo nas ruas de São Paulo. Logo logo, questão de dias, a notícia de que meu irmão mais novo morrera num acidente de estrada, no famoso trevo da morte, em Uberlândia.
Eu estava fazendo o possível e o impossível para sair do Brasil por uns tempos. Razões subjetivas e objetivas. Eu já estava formado em Ciências Sociais, e dava aulas de Psicologia Social como professor substituto. Eu estava com meu fusquinha recuperado (mas o venderia mais à frente pra fazer caixa pra viagem). Pretinha então era doce saudade. O coração batia forte por uma aluna da psicologia, baixinha e bela de abafar meu fôlego. Nosso caso não avançou muito, eu temia que por aquela paixão os planos da Europa viessem por terra. Eu tinha que ir. Aqueles três anos, sem voltar aqui, seriam fundamentais para meu reequilíbrio pessoal, dentro do possível. Abafei a paixão. Fui. Ela se casou com um grande amigo, jornalista, e as vidas seguiram. Não nego, que não sou de negar, que durante essas décadas, ela trabalhando, crescendo e brilhando na boa militância, eu feliz da vida ao lado da Katinha, amor da minha vida, quando a gente se encontrava nas coisas da vida social. com muitos interesses comuns, os meus olhos ficavam meio fugidios, e batiam pequenas cafubiras na espinha. Esse sou eu. Engraçado, penso agora, é que ela não tem ideia disso que agora conto, e não sei se ela se sentirá homenageada ou traída em nossa longa amizade (inclusive porque ela sempre passeia por aqui, nas páginas desse Facebook). Ver-se-á. Para o maridão, amigo, um beijão carinhoso.
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