Corria sem suavidades o ano da graça de 1972. Melhor dizendo, mais um ano da desgraça brasileira. Eu estava nos meus derradeiros períodos do curso de Ciências Sociais, da FAFICH-UFMG, e no fundinho desejava dar um tempo longe do Brasil triste e reprimido de então. Mais do que um sonho, aquilo soava a um delírio. E o problema, ou solução, é que eu adorava, e adoro delírios.
Para viver, sobreviver e juntar uma graninha, eu passava o dia na Faculdade. Era comum levar um sanduíche de mortadela de casa, e almoçá-lo com uma copada de café na cantina do Ernesto. A úlcera de esôfago deu até um tempo antes de cobrar a conta. Eu estudava de manhã, e à tarde cumpria funções diversas, de monitoria ou não, no Setor de Psicologia Social, sob a inspirada liderança do grande mestre Célio Garcia. Por aqui, outros causos, futuros.
Meus deslocamentos eram meu calcanhar de Áquiles. As muletas me davam limitadas autonomia de andanças, e eu não conseguia usar transporte público, nem tinha grana pra táxi. O básico eram caronas, paternas ou outras, uma famosa pedição para outros, “oi, gente boa, tudo ok? Tá indo pra onde? Pode me deixar ali na esquina de X com Y? Que bom. Vamos lá “.
Fundamental era contar com os amigos mais velhos, ou bem aquinhoados, que tinham seus caros, ou filavam os dos pais. Outra fonte deliciosa de causos. A esses amigos, de verdade, e à paciência deles pra me rebocar praqui e pracolá, devo o que consegui ser. Talvez por isso eles se arrependam, mas já é tarde. Perderam, Playboys!
Vixe! Nem eu me aguento. Que saco. Onde fui parar. Volto ao causo. No início desse 1972, meu pai me deu um fusquinha amarelo, e minha vida virou de cabeça pra baixo (até literalmente, como veremos logo ali). Reprogramei-me física, cultural, profissional e, com certeza, até sexualmente. Ir a motel de carona, e eu ia, era, quando pouco, constrangedor para as parceiras. E nenhuma nunca chiou. Compassivas que eram, ainda me olhavam com os sorrisos mais lindos. Pergunto: um cara assim pode se queIxar da vida? Nem sendo demente.
Com meu fusquinha, e a intervenção de amigos, logo arranjei trabalho como professor de relações humanas no Senac. E trabalhei como uma mula esconjurada, em todas as horas liberadas pelos compromissos acadêmicos. E comecei a juntar uns trocados. Certos dias chegava a dar dez aulas seguidas, de 50 minutos cada, com 10 de intervalo. Irreais porque alunos se agarravam em mim pra papinhos de arremate. Apesar de um spray de gengibre e própolis regar a goela, vez ou outra a voz sumia, se escondia no banheiro.
Numa turma noturna, de repente surgiu uma pequena deusa. Linda, me cobria de sorrisos, de palavras, e sempre eu notava que após essas aulas meu cabelão, em rabo de cavalo graúdo, minha barba e minhas roupas ficavam faiscantes. Logo percebi que eram os brilhos intensos dos doces olhares da Pretinha que haviam respingado em mim.
Um dia, não muitos dias depois, ao sair do prédio após minha última aula, tipo onze da noite, fui para meu carro estacionado ali pertinho, na rua Tupinambás. Vagas não eram problemas então. Não vi a porta. Nela estava encostada, o mesmo sorriso, o mesmo olhar, a linda Pretinha. Me olhou nos olhos, e foi direta:
- estou apaixonada por você, e quero ser tua.
Isso. Assim. Nesse tom novelesco, o que me surpreendeu, por ser Pretinha, uma moça, aparentemente tímida, que ainda não chegara a seus 20 anos de idade, apesar dos séculos de beleza miscigenada que nela se acumulavam. Se não me ajoelhei na calçada para beijar seus pés, de tanto encanto, foi porque meus aparelhos ortopédicos eram menos românticos que eu. Trocamos um beijo ligeiro, entramos no fusquinha e fomos aos desdobramentos que então eram menos aceitos que hoje em dia.
E foi cheio de orgulho, por não estar de carona ou taxi, e sim de condução própria, que, coração na boca, mergulhei no corredor escuro do Motel Hawai, na subida da antiga BR3 (aquela do Toni Tornado). O que ali se viveu e se vibrou, é coisa que um cavalheiro não conta, não tem direito de contar nem na beira do túmulo. Tenho vontade de estrangular esses babacas, incompetentes, que filmam e fotografam suas parceiras nessas horas, e depois tentam chantageá-las, aborrecê-las.
Pretinha que, tendo corrido tudo bem, hoje deve ser uma belíssima mulher na flor de seus 65 anos, mulata, charmosa, doce e sensual. Na certa, uma mulher de sucesso no que escolheu realizar na vida. Namoramos um tempo não longo. Pretinha tinha projetos diversos dos meus para o futuro breve, e para nossa paixão.
Chegou o dia que seria determinante. Depois da aula, ela me convocou para uma festa familiar. Queria que as pessoas me conhecessem. Fomos. Chegamos numa casa bonita, distante do centro. Quando ela me apresentou seu tio, o dono da casa, com quem ela morava, acho, tremi nas bases. Um negro bonito, forte, charmoso... e titular naquele time inesquecível do Cruzeiro (até para um americano). No ambiente, um pouco embaçado quando visto de agora, o Natal, o Dirceu Lopes, o Piazza. Talvez até o Tostão. E a Pretinha passeou comigo de braço dado. Via-se que ela havia falado de mim, e provavelmente bem. Meio zoado com tanta novidade, bebi uma, bebi duas, bebi todas. E ela me chamava a atenção. Me lembrava que eu teria que dirigir um bom pedaço. Me convidou a quietar por lá até resgatar o juízo. Nada. Eu me preocupava com o que tinha que fazer pela manhã na Faculdade, em verdade, mais que isso, quis dar uma de macho. Despedi-me. A festa já em baixa. Entrei no fusquinha, e fui.
Mais ou menos, pelo que me lembro, tive alguma lucidez e controle até chegar perto do Colégio Loyola. Dali uma grande descida que cruza duas avenidas importantes, depois uma subida de uns 100 metros, se tanto, e uma curva de 90º à direita. Pois esse foi o trajeto que, penso, fiz dormindo e misteriosamente incólume. Até que acordei entrando na curva, e motorista ainda pouco experiente, dei um golpe forte no volante, tentando o controle.
Tentando, disse bem. O fusquinha, em boa velocidade, capotou de uma vez, e subiu a avenida do Contorno, no rumo do Colégio Estadual (meu paraíso... agora ameaçando levar isso a sério), com o teto ralando o asfalto, rodas pra cima, cintos ninguém usava, até bater no poste que fica na esquina da rua Marquês de Maricá. E escalou o poste de bunda, o motor em cima, e parou quase na vertical, as rodas voltadas para a rua.
E eu lá dentro, de cabeça pra baixo, curando bebedeira na porrada e sem saber reagir. Tudo, nesses momentos, se mede em segundos. O óleo escorreu no motor quente e, pelo vidro traseiro estourado, o carro se encheu de fumaça. Juro que não sei como, saí pela janela e me arrastei para o meio do asfalto. A curva é muito perigosa, e de velocidade, e sem visibilidade, mas eu estava protegido pelo relógio. Eram 4 horas da manhã. Sem trânsito.
Logo apareceram pessoas saídas das casas (um amigo de um amigão meu fala disso até hoje), mas nada me marcou mais que o rapaz que estava com o carrinho de Hot Dog na esquina de cima, e que, correndo, foi o primeiro a chegar. E daí estabelecemos um dos diálogos inesquecíveis de minha vida:
- sai daí, moço, levanta logo. Você vai acabar sendo atropelado.
- você tá certo. Obrigado, disse eu. Mas pega minhas muletas pra mim ali dentro do carro. Veja se elas estão inteira.
- que muleta, moço? Cê tá é bêbado. Levanta daí. Deixa eu te ajudar.
E ele me deu uns dois tapinhas na cara ralada, suja, meio ferida. E insistiu:
- levanta...
- eu só consigo com minhas muletas. Acredite em mim.
Felizmente, bom homem do povo, ele acreditou, providenciou, e eu logo estava de pé, sóbrio como no dia da Primeira Comunhão, e morrendo de vergonha de mim mesmo. E da Pretinha. E isso acabou sendo um balde de água fria em nossa relação fogosa. Deu DR. Tesão baixou. E seguimos nossos caminhos, certamente um lembrando do outro com carinho e emoção. Fico fantasiando que em algum lugar do planeta, um dia ela lerá essa reverência carinhosamente relatada. E que, lendo, respire fundo, contemple o infinito do cosmo, e que me dedique alguns minutos de seus mais poéticos devaneios. Acho que ando precisado.
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