Certas datas comemorativas abrem fissuras nas memórias pessoais, e a nostalgia goteja, escorre sobre os sentidos. E, de algum modo, a gente revive o vivido, feliz ou não, mais ou menos nítido, mais ou menos passível de ser refeito.
Comemora-se 30 anos da queda do Muro de Berlim, e me teletransportei pra lá, truques da memória. Era 1974, no verão europeu, e o Muro ainda ficaria quinze anos em pé. No meu DAF adaptado, vermelhinho, carrinho popular holandês que me levou pra conhecer boa parte da Europa. Na maior parte das vezes viajei sozinho, desafiador e feliz da vida.
Em companhia de uma amiga alemã, fluente no português, moradora de Berlim, zanzei de cá pra lá, e conheci comovido boa parte daquele anti-monumento e de suas histórias. Em alguns pontos a gente se deparava com plataformas, acessíveis por escadas, das quais era possível contemplar o outro lado, mesmo se ainda separado por boa extensão de terrenos minados e cercados por arames farpados.
Eu não conseguia subir nas plataformas, mas me emocionava ao ver as pessoas, muitos velhos, acenando pro lado de lá com as mãos, ou com lenços brancos. Muitos binóculos e lunetas auxiliavam as fantasiosas pesquisas. Com ajuda da amiga, conversei com vários deles, ouvi histórias.
A história da própria amiga foi a que mais me marcou. Ela, ainda criança, tinha uma prima como melhor amiga, e moravam a cem ou duzentos metros uma da outra. Uma manhã, depois de uma noite de muita chuva e barulho, quando acordou viu que na avenida diante de sua casa havia um amontoado de ferros e arames que logo dariam base a um grande muro.
Ela ficará do lado ocidental, e sua prima do lado oriental. E até aquela data, ambas já adultas, nunca mais haviam se visto ou se falado. Uma sabia da outra através de raríssimas mensagens clandestinas. A amiga me contava tal tristeza com germânica sobriedade. Eu me desmanchando em lágrimas. De há muito perdemos o contato, mas na época da queda pensei muito naquele amoroso possível reencontro.
Como profissional do ramo, li um bocado de coisas sobre a importância histórica, política e sociológica daquela data emblemática. Mas, confesso, é na amiga que fiquei pensando. Estará viva? Feliz? Gente tão boa, ela mais que merecia.
Mas, a crueldade do tempo se apropriou de seu nome, e por mais que empurre caixas e caixotes na memória, ainda não encontrei. Em compensação, sua imagem veio nítida. Vivemos naqueles poucos dias, pequenos momentos românticos. E vejo seu rosto lindo bem pertinho do meu. Como a vida é bela!
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