O flagrante patético e marqueiteiramente executado do Bolsonaro no bandejão, comendo solitário (que deve ter saído de sua própria cabeça, ele tem esses instintos), tirou da paradoxal hibernação contra o calor alguns dos poucos neurônios ainda em condição, e dispostos a trabalhar, em minha embolorada massa cinzenta. E um enigma se assanhou.
Um enigma que deve interessar aos curiosos de todas as estirpes. Qual seja, como se dará a curto e médio prazo o convívio entre as duas tribos básicas, ao menos ideologicamente, que frequentam as sombras e as luzes do palco cabuloso do governo Bolsonaro.
De um lado, a turma refinada, de ternos bem cortados, branca, pragmática, sem carências financeiras, em geral afastada dos embates e baixarias da política partidária e cotidiana. Uma tribo titulada nos estudos, cultivada nos hábitos e consumo, seleta nos relacionamentos, ultra liberal na economia e que não gasta energia com banalidades como nacionalismo e patriotismo, e enraizada nos ditames da Escola de Chicago. São os boys do Milton Friedman, premiado com o Nobel de Economia. Eu os imagino, na intimidade tribal, rindo gostosamente das baboseiras religiosas e culturais de seus parceiros de governo. Afinal de contas, eles são os donos do dinheiro, e de seus rumos, e é sabido que rico ri à toa.
Na outra tribo básica, ideológica e culturalmente mais próxima ao poderoso chefão, juntam-se personagens mais diversos, mas em geral tendo em comum origens pessoais mais simples, uma caminhada mais árdua pra vencer na vida, um profundo senso de oportunismo e destacada habilidade para manejar crenças, medos, religiosos ou do cotidiano, não raro sentimentos que são filhos diletos da ignorância, da carência educacional, da desinformação. Lembrando que o fundamentalismo, em especial o religioso de origem pentecostal, que garante que a vida e o mundo estão explicados no Velho Testamento, se apresentou para cobrir tais lacunas, e obteve extraordinário sucesso num Brasil até então partilhado mornamente entre católicos, cultos de origem afro, protestantes tradicionais e outros. E que ele conseguiu se infiltrar transversalmente, domando o universo simbólico de várias classes ou níveis sociais.
Como a tribo da grana é, por sua própria natureza e razão de ser, modernizante, estimuladora do mercado liberal e da circulação do dinheiro (nada a ver com distribuição da riqueza), e devota da divindade planetária que tem os bancos como templos, em algum momento de futuro não distante ela sentirá como obstáculo a suas ambições a pauta impeditiva, moralizante, restritiva ao que essa tribo entende como democracia liberal, com suas liberdades burguesas, cenário determinante para a expansão de sua visão de mundo.
E podemos, sem especular muito, imaginar o vive-versa. Inclusive porque na cabeça da gestão os ventos se dividem entre o anacrônico e desorientado Capitão, e o liberal safadinho do Mourão, que ficará contemplando o embate como os seus parceiros de casta: através do vidro blindado do trono refrigerado e bem servido, cercado por canhões e afagos de puxa-sacos e oportunistas.
E o Moro, hem? Bem, esse aí é outro enigma. Teremos que esperar mais um pouco para contabilizar os resultados de sua caça com a grande rede de pegar borboletas. E o veremos ainda, com farta cobertura midiática, sacudindo as moitas, esperando que dali voem corruptos, fantasmas, petistas e, pra sua alegria, grilos de todas as espécies.
Vou parando. Meus frágeis neurônios voltaram a implorar por sombra e água gelada.
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