sexta-feira, 25 de julho de 2025


Velho de muito viver
tem coisa que já não me ilude
tomar ferro na vida, saiba,
pode ser ato de pura saúde.

Croniqueta de um velho na muda 10

Há precisos três meses deixei pra trás minha casa amada (ora dita ex casa). Uma hora de trânsito, se tanto, e cheguei aqui. E aqui estou, Um albergue para pessoas usufruindo existencialmente de suas horas extras. Estou desde a chegada na cama, ainda não acatei a sedução da cadeira de rodas para me aventurar nos entornos. Outro dia trato disso. A cadeira está ali no canto, meio triste e humilhada, e me olha com a sensualidade de uma freirinha. ensopada pela água de um pneu desaforado que abateu a coitada, no exato instante em que ela ladeava uma grande poça deixada pela chuva. Me compadeço.

A razão me trouxe, a emoção é mais sábia, e portanto menos complacente, não se contenta. A acomodação é irmã siamesa da burrice. Desconfio, matutando, que aqui cheguei inteiro, bombardeado por impressões e temores que soube dissimular (dizem que a primeira impressão escraviza o perfil, sei não...). E foram se fazendo histórias pra contar. Adoro ver formiguinhas parindo onças.

Pousaram meu sensível corpanzil no leito, onde ora me encontro, e então pude ir quietando, respirando mais pousado, até que a mente se dispusesse a olhar pra dentro. Foi quase sem surpresa que percebi que minha alma não chegara, escapara no caminho, tal um preso que encontra a porta da viatura aberta. Minha alma sempre teve liberdade, não era acusada, e não carecia de culpa. Em tempo, me refiro a minh'alma de ateu, alma poética, dita soul nas artes. E dos rumos de sua fuga só encontrei um post-it rosa, pregado na parede do coração, onde se lia: FUGA FUGAZ /  VOLTO DEPOIS / SÓ NÃO SEI SE PRA FICAR.

Achei justo e de bom tamanho. Em verdade, eu a criei mesmo pra ser livre, coisa que no geral os deuses poderosos não souberam aprender. Ela e eu nos amamos. Hoje temos nos falado pelo zap, e ambos preferimos trocar a imagem pela imaginação. 

Madrugada dessas, minh'alma andou beijando meus olhos e só percebi no amanhecer. Nos meus ouvidos reverberavam o sussurrado então. Disse ela que, por nossa felicidade imbatível, ela iria navegar, voar pelos ares, correr e mesmo pedalar por mim, desejo maior. E que não me negaria nenhum detalhe do vivido e do sentido nas venturas e desventuras na vida que nos sobrava. Ouviu de mim que quando o cansaço for muito, e o insuportável se tornar insuportável, fizesse desse velho peito refúgio e repouso.

Só não revelei que, quando minh'alma não está em mim, sinto uma tristeza de fundo que não consigo superar. Assim é o amor, posto que amor é liberdade. Quero que ela saiba que, por ela, devagarinho vou superando a sensação de que aqui é meu fim de linha, que só me restou o paciente e insípido contar os dias, descontar as noites. Ambiciono me sentir longe daqui, aqui mesmo.

Mas, esses três meses podiam ter corrido menos, isso podiam.