Depois de longa e tenebrosa ausência, transcrevo aqui a matéria perpetrada para a próxima edição do Cometa, de onde sou colaborador desde antes da invenção da imprensa (e, agora, também online).
Quem merece minhas lágrimas?
Coberto, cercado, imerso e anuviado pela pletora de informações, e
desinformações, sobre o 11 de setembro, e seus desdobramentos, fiquei aqui
meditando com meus velhos botões em suas casas puídas: seria possível, e faria
sentido, um tal evento, digamos assim, 20 anos antes, em 1981? O que seria, se
é que seria, do espetacular atentado sem o celular universalizado, a internet
estando reservada aos militares “desenvolvidos“, as redes sociais ainda como
ficção científica e as transmissões via satélite, em especial de TV, ainda
engatinhando?
Acho que seria totalmente outra coisa, tanto na surpreendente
concepção, e realização, quanto, e principalmente, na repercussão estonteante
que foi buscar até o mais distante dos beduínos ou esquimós. Um fato do mundo,
talvez como nunca antes na história... desse mundo. Os mais grandiloquentes,
que costumam ser também os mais mentalmente preguiçosos, urraram na bucha
coisas do tipo “a partir desse dia, a história humana se divide entre o antes e
o depois da queda das torres gêmeas”, “nosso mundo nunca mais será o mesmo”, e
os mais despudorados, sem vacilo, “o ocidente e o oriente (sic!) se enfrentarão
numa guerra final”, “o islamismo mostrou sua verdadeira face, seus valores são
inconciliáveis com os nossos (sic!)”. E a macacada, entre dois carrapatos arrancados
da pança, entre eufórica e lacrimejante seguiu repetindo tais dísticos mídia e
internet a fora.
Humilhados como foram, percebendo, desde antes, que a bunda de seu
domínio sobre o mundo estava exposta, levando bicudo de tudo que era lado,
vendo-se como o pai que apanhou em público do vizinho fracote e roto, os
Estados Unidos da América não podiam se contentar com a banalidade de matar um
monte de terroristas, e conterrâneos desses malvados, ou de tratorar uns dois
ou três países não tão “democráticos como deveriam ser”, habitados por gente
não tão civilizada assim. Isso era importante, mas não bastava. Nem de longe.
Os EUA haviam aprendido, com a já distante derrota no Vietnã, que só
se ganhava uma guerra no mundo contemporâneo conquistando corações e mentes. E
eles agora tinham experiência, e conheciam os instrumentos mais eficazes para
empreender tal batalha. Essa parecia ser a
tarefa. Lembro-me bem que, em paralelo ao turbilhão de imagens chocantes e
declarações desencontradas, começaram, com o apoio de toda a mídia
oficializada, a tentar relativizar o papel imbecil e a cara de babaca do Bush
Jr ao receber, quase ao vivo, um cochicho na orelha anunciando a catastrófica
notícia. E ele ficou não poucos instantes naquela postura, no mínimo pouco
adequada, no caso, para o homem mais poderoso do mundo: a cara entre impassível
e assustada, sentado numa cadeira baixinha enquanto o mundo parecia lhe cair
sobre a moleira, tendo interrompido a historinha que contava, numa escola, para
um grupo de crianças, ora perplexas.
Os EUA teriam também que conviver, mais que antes, com os paradoxos
impostos por seus encantos e sua liderança. Como explicar, a si mesmos, a
eficientíssima assessoria prestada ao bando de jovens terroristas por Mr. Gates
& Cia? Vejamos. Se a perfeição absoluta do atentado, e de seus efeitos, não
poderia ser imaginada nem por Alá, num momento de entediado devaneio, a chance
da execução seria igual a zero sem as habilidades adquiridas através do Flight
Simulador, da Microsoft, e outros softwares de alcance público. Aqueles modernos
kamikazes muçulmanos nada tinham pilotado além de pequenos Cessnas, e detinham
ralos conhecimentos próprios sobre o espaço aéreo norte-americano. Sentados diante
de computadores, certamente americanos, eles passaram centenas de horas,
durante dezenas de meses, provavelmente até se divertindo nas simuladas cabines
de imensos Boeings, tirando rasantes sobre prédios, treinando a mira nos alvos
gêmeos que pareciam marcar em definitivo a skyline nova-iorquina, e, quem sabe,
antegozando o prazer sagrado de se esborrachar no Pentágono, símbolo maior da
segurança ianque.
Mas, passados dez anos dos atentados, mesmo estando a mídia temerosa
de perder uma pauta tão garantida e certeira quanto a trajetória de três
daqueles quatro aviões, as homenagens e comemorações deixaram claro que uma
lição ainda está por ser aprendida. Enquanto houver hierarquização dos
sofrimentos e da dor, a paz será um alvo distante para olhares tão míopes. Como
explicar a um iraquiano ou a um afegão que as centenas de milhares de mortos,
civis em imensa maioria, em seus territórios, são banalizadas pela observação civilizada
do mundo ocidental? Como compreender que os quase três mil mortos nos atentados,
e os 6.300 soldados mortos no Iraque e Afeganistão, sejam reverenciados com
placas e belos monumentos, e com o choro comovido do universo midiático, ao
mesmo tempo em que os que perderam a vida do “lado de lá” são juntados nos
desumanizados pacotões das estimativas imprecisas?
Como afirma a publicidade de algo que não me lembro o quê, são as
perguntas, e não as respostas, que movem o mundo. Quando o mundo do “lado de
cá” se disporá a enfrentar as grandes questões do hoje, abrindo mão das
respostas fáceis do nosso conforto? Quando descobriremos que é inviável a
globalização baseada apenas na partilha dos ônus?
Tais são apenas outras perguntas. Banais, como tantas.
Paulinho Saturnino Figueiredo
Setembro de 2011